quarta-feira, março 29, 2006

Perífrase

Pensamentos sobre mim, sobre você, sobre eles e nós: você me explica das relações do mundo, enquanto eu reparo na sua perna que balança freneticamente; o vento forte nos traz lembranças de longe e me leva, como se eu fosse a folha seca do outono; já não consigo ver meu jardim e sentir o perfume dos girassóis.

Discussões sobre mim, sobre você, sobre eles e nós: você ri do meu riso e eu choro pelas suas aflições; roubaram-me as noites de sono, o chão dos meus pés e o som do meu violão; será que um dia eles foram meus? onde esta minha rosa amarela? será que ela ja foi minha?

Conclusões sobre mim, sobre você, sobre eles e nós: furacões passaram e nada voltará ao normal; é preciso levantar e se sacudir para tirar a poeira que o tempo deixa sobre nossos corpos; não gostar de Platão é fácil, difícil mesmo é ir contra suas teorias; não existe relacionamento se não houver troca; é possível gostar da luz da lua e do calor do sol, mas não se pode ter os dois ao mesmo tempo.

terça-feira, março 21, 2006

In mente

Involuntariamente na memória, o sorriso que outrora me enfeitiçou. Nos pés, a incerteza de continuar caminhar a sua procura. Nas mãos, o suor do nervosismo que me consome. Nos ouvidos, a voz aveludada que me arrepia.

Incontrolavelmente nas pernas, o balançar trêmulo de quem anda em nuvens de incertezas. Na pele, o perfume de anjo que embreaga. No estômago, o gelado que inspira êxtase. No coração, a corrente elétrica que sinto ao te encontrar.

Inconsebivelmente fujo da vertigem provocada pelas palavras que adormecem minha alma, da brasa esperançosa que nunca apaga, dos pensamentos que me fazem rir e chorar.

Incondissionalmente me hipnotizo com seu manso brilho, sua personalidade ímpar e face macia. Entrego-me à agonia de continuar nas margens do infinito e à alegria de não me curar de você.

quinta-feira, março 16, 2006

Entreveros

O asfalto queima os pés e esconde meus mistérios.
Os arranha-céus bloqueiam o sol e deixam-me pequenina.
As ruas se cruzam, assim como as pessoas. Eu me vejo em paralelas.
As parabólicas captam meus desejos mas a televisão continua fora do ar.
A névoa toma conta dos meus tormentos.
As placas dizem e eu me calo.
As luzes dos carros iluminam as ruas e me cegam.
Excesso nas marginais. Falta em mim.
A rádio pirata tenta a inclusão na frequência. Eu também.
Árvores buliçosas deixam cair folhas secas sobre o meu corpo, que cria raízes.
Olhares eletrônicos me perseguem, mas não me encontram.
Janelas não revelam o lado de lá. O lado de cá ninguem quer ver.
Em suas redes, varandas guardam solidão à dois.
Os quadros descolorem e eu não acho a aquarela.
As paredes são rebocadas e a minha pele se despedaça.
Há sinalização de velocidade máxima e eu corro sem me preocupar com a curva.
Minhas costas doem e eu resisto aos efeitos químicos.
Me enlouqueço calmamente.

O dia se renova todo dia. Eu envelheço cada dia e cada mês.
O mundo passa por mim todos os dias. Enquanto eu passo pelo mundo uma vez.

segunda-feira, março 13, 2006

Desconhecidos

Achamos que as conhecemos, mas no tropeço do destino vemos que somos rodeados de pessoas estranhas. Sinto como se meus olhos fossem de vidros grossos pois enxergo rostos embaçados. As mãos gosmentas seguram meus braços e as vozes irregulares gritam meu nome pelas ruas tortas.

Os olhos vermelhos tentam esconder a angústia do desapontamento. O coração é atingido por flechas ponteagudas repletas de veneno. Os pés estão cobertos de aranhas. As unhas caem. Os seios murcham. Os gritos de silêncio, ninguém escuta. Os transparentes ematomas, ninguém vê. As secas lágrimas, ninguém sente.

Necessito dos braços da minha família e sentir o afeto dos meus amigos. Quero ver rostos conhecidos e mãos quentes.

sexta-feira, março 10, 2006

Lembranças

O dia amanheceu cinza, o céu desabava em prantos, o transito estava parado e o farol fechado. Vi pela janela do carro a chuva que molhava os pés do garoto e a senhora que corria para se proteger. Desliguei o rádio pois não aguentava mais os ruídos da estação que ficava o tempo todo fora do ar. Foi quando escutei lá longe um som diferente. Vi então de roupas simples andando na chuva, o flautista que tocava uma canção alegre nos trazendo a impressão de que o sol ali brilhava ha tempos.

Por razões desconhecidas, aquela música me fez lembrar de quando andávamos no Ribeirão da Ilha. Ah! Que saudade daquele mar azul no qual nascia o dia. Saudades daquela areia branca onde passávamos o fim da tarde ouvindo o som das cordas do seu violão se misturando com a voz áspera daquele senhor, que cantava tão bem Velha Guarda da Portela. Amava aquela música, principalmente quando no som você colocava bem baixinho para me acordar de manhã. Junto à ela, ouvia aquele sotaque carioca te chamando para tomar Nescau. Sinto falta daquela risada gostosa insistindo que comecemos o "raio da raia".

Enquanto o filme passava pela minha cabeça, meus ouvidos escutavam a nossa trilha sonora. Nem sei dizer quantas músicas cantamos juntos. Desde aquele natal não conseguiamos parar de cantar. Era no sofá, no trânsito, na praia, no parque, na cozinha e até no tributo. Você tinha o dom de cantar e me encantar. Falava de minhas pernas para me deixar corada. Cantava B&M para me provocar. Alugava filme triste para que lágrimas de emoção caissem dos meus olhos.

As solitárias risadas que eu tinha naquele momento foram interrompidas pela mão na buzina do mal humorado. Não existia mais flautista, mas lá atrás da nuvem, ainda pouco tímido, o arco-íris começava a colorir o céu e o meu dia também.

quarta-feira, março 08, 2006

Deixe...

Eu olho para sua nuca e você finge que não estou ali. Conto meus segredos para o travesseiro pois você faz como se não fosse do meu mundo. Vejo-o como miragem no deserto e não consigo te alcançar.
Ah! Por favor, abra seu coração. Sinta o perfume das rosas. Deixe o rio do sentimento fluir. Esqueça os pensamentos ruins e ria do fato de não saber o que é certo e errado. Deixe-me conhecer os seus mistérios. Voe comigo. Me segure. Veremos desenhos nas nuvens e a noite contaremos as estrelas ouvindo o vento que soprará canções. Saia desse labirinto da mente e venha ver o pássaro com uma folha na boca. Faça-me carinho. O coração é um broto que floresce rápido em meio ao chão pedregoso. Dance comigo. Seja razão da minha insônia. Me beije. Eleva-me ao paraíso. Vamos descobrir um ao outro. Olhe pra mim com o seu sorriso maroto. Cochichemos besteiras. Sonhemos juntos.

Deixe que o tempo cure. Deixe que o beijo dure.

segunda-feira, março 06, 2006

"Ai se sêsse" de Zé da Luz

Se um dia nois se gostasse
Se um dia nois se queresse
Se nois dois se empareasse
Se juntim nois dois vivesse
Se juntim nois dois morasse
Se juntim nois dois drumisse
Se juntim nois dois morresse
Se pro céu nois assubisse
Mas porém acontecesse de São Pedro não abrisse
a porta do céu e fosse te dizer qualquer tolice
E se eu arriminasse
E tu cum eu insistisse pra que eu me arresolvesse
E a minha faca puxasse
E o bucho do céu furasse
Tavés que nois dois ficasse
Tavés que nois dois caisse
E o céu furado arriasse e as virgi toda fugisse

quinta-feira, março 02, 2006

Aos poucos

São tantas histórias. Tantos pensamentos. São frases, orações, palavras, sílabas e letras. Pensei que se continuasse naquele ritmo minha alma implodiria.

Meu jardim começa a descolorir e a terra a secar. Minha rosa amarela ja não mais se destaca dentre as demais. Olhei então para frente e vi que a estrada estava se acabando e meu chão desapareceria. Foi então que saltei.
Fechei os meus olhos com toda a força e num instante, sem momento de partida, pulei deixando que o vento me levasse para onde quisesse. Exilei-me de mim mesma. Senti o ar entrando em meus pulmões. Conheci o céu, pulei nas nuvens e conversei com os pássaros que me acompanhavam.

Por força desse destino, anoiteceu e a minha amiga Lua não estava lá. Era fatal que o faz-de-conta terminasse assim. Tive que descer. Decidi então que ao colocar os pés no chão caminharia devagar, respirando profundamente, passo a passo, letra a letra, pensamento a pensamento. É tão pouco, é muito louco, ser flor e pedra no caminho, sofrer, gemer, quase em silêncio. Mas não morderei mais meu travesseiro com o grito. Estou abrindo a janela desse trem para ver a casa na colina.